A morte é certa e não sabemos o que vamos encontrar, mas cada qual vai inventando uma forma de se preparar.
Na época da universidade dividi quarto com o Adilson, por uns tempos.
Todas as manhãs era uma novela o cara se organizando para iniciar o dia. Por exemplo, ficava esfregando a lâmina pelas faces a fim de que a barba ficasse perfeitamente escanhoada. Você poderia passar um algodão que não repuxaria um só fio. Quando questionávamos ele respondia que precisava iniciar o dia com zelosa perfeição, para que o mesmo transcorresse numa sucessão de instantes perfeitos.
Ninguém nunca soube de onde o malandro tirou essa ideia.
O fato é que na semana passada o Adilson passou dessa para melhor. Abotoou o paletó. O diagnóstico de câncer no fígado não deixou a menor dúvida sobre o pouco tempo que lhe restava para caprichar tanto na barba matutina.
Ontem fui à sua casa, ajudar a Sandra com algumas burocracias. Mas foi inacreditável o que encontrei. Tudo estava organizado sobre a mesa de trabalho dele. Com aquelas etiquetas coloridas orientando os procedimentos de cada pilha de papel. Aí a Sandra informou que o enterro foi a mesma coisa. Estava tudo planejado, já ajeitado.
Saí de lá com a suspeita de que ele, talvez, tenha pensado que deixar tudo organizado em minuciosa perfeição vá garantir que o pós mortem dele também seja uma sequência de eventos perfeitos.
Talvez tenha negociado a compra de um bom lugar do lado de lá através da dedicada e meticulosa organização dos seus assuntos, como se estivesse a fazer a barba numa clara manhã de verão.
Eu pensava já ter visto de tudo nessa ânsia por comprar um pedaço do paraíso, mas nunca me passaria pela cachola essa negociação feita pelo Adilson.