Miséria de trabalhadora nem é moeda corrente. Mas o importante é estarmos em pé, aconteça o que acontecer.
UM ACIDENTE NA CALÇADA.
A calçada por onde transito foi recém feita para a reinauguração do velho posto de saúde. Tudo em paz e sol: assim me parece.
Porém, eis que sou abruptamente atropelado pela senhora que sai portão afora. Vem com os olhos lambendo os pavers do passeio novo e não me vê.
Eu me desequilibro apenas, mas ela vai lambuzar a calçada com as lágrimas que estavam ornamentando suas sulcadas faces.
Mas minha senhora, o importante é estarmos em pé, aconteça o que acontecer.
Penso em ser gentil e lhe amparo a fim de que se ponha nesta posição de dignidade. Ela desaba sobre meu ombro.
Pois esta história é a velha história de brasileiros e brasileiras desamparadas, a quem até meu indefectível ombro serve. Pessoas enrodilhadas na burocracia do Estado, antes perverso do que protetor.
Ela sofreu um acidente de trabalho. Afastada, recebeu uns meses do INSS. Venceu o prazo, mas a perícia tardou mais três meses de necessidades e fome. Junto com a penúria da falta de pagamentos, precisou penhorar a dignidade pouca que a pobre já nem tinha e socorrer-se na vizinhança primeiro, depois com os irmãos da igreja e por fim até com desconhecidos de consciências pesadas. Assim, temperou a fome com vergonha.
Por fim chega o dia da tal perícia. Exigem um exame médico de nome impronunciável.
Então hoje ela colocou na sacola a identidade, o cartão do SUS e umas migalhas de esperança. Esta mesma esperança pouca ela espalhou pelo balcão de atendimento do posto de saúde; do lado de cá do acrílico que separa o seu mundinho do mundo do funcionário. Ela reconhece a utilidade do acrílico a diferenciá-los. Sabe ser uma brasileira de terceira, talvez quarta categoria, não tem como precisar essa matemática social.
A funcionária por detrás do guichê dá conta de recolher a esperança toda, até o último centavo; embaralha numas explicações inexplicáveis de tão incompreensíveis e devolve à senhora a certeza de que esse exame, só pagando no particular.
Pagar com quê, se miséria de trabalhadora nem é moeda corrente?
Antes de ir com as fuças à calçada, essa nossa personagem recolhe na sua bolsa a identidade, o cartão SUS e no lugar da esperança que ficou no guichê, deposita dois punhados de decepção, já umedecidas com as primeiras lágrimas.
Um encabulado eu pede desculpas à senhora pelo encontrão.
Ela diz que é uma pena ter tropeçado em mim. Desculpa-se também, em meio a uma fungada.
A mulher pensa que seria melhor ir de encontro ao rodado do ônibus, este aí que passa por nós, sem que ela tenha o dinheiro para a passagem para um mundo menos malvado.