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Dissolvido em álcool

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Figuras silenciadas: idosos em situação de rua, de Denis Adinan, fotografada no SESC Cadeião, Londrina - PR, jul/24.

Antes de engolir o comprimido que lhe ofereço ela jura que me ama e que nunca mais irá beber. Eu acredito piamente nas suas juras . . . de novo.


DISSOLVIDO EM ÁLCOOL.

Pois a verdade é que hoje eu queria colocar gargalo adentro os aborrecimentos da semana. Estariam meus problemas melhor acomodados na garrafa do que no travesseiro. Mas não será possível. Então ela senta ao meu lado e pede uma dose dupla. Já sei que nessa noite ela vai se despir da consciência. Vai beber até não poder mais.

Portanto, preciso ficar sóbrio para ouvir tudo o que virá sem a coragem de resposta que o álcool me confere. Enfim, peço uma calabresa acebolada, peço um suco, peço um tempo.

As doses sucedem-se, descem e sobem ao ritmo dos braços, cujos movimentos tornam-se tão inexatos quanto suas falas moles.

Agora com a nova dose, vem uma azeitona e a declaração de amor. Então passo a ser a pessoa mais amada do mundo, etílico objeto da paixão.

Saudades da porção de calabresa, pois a próxima dose virá acompanhada da dúvida. O amor já se dissolveu no álcool. Agora vem a proposta de separação. A certeza alcoólica de que não combinamos, embora os músicos continuem a tocar o mesmo sertanejo fanho de antes.

A sequência é ela falar do quanto sou medíocre, infiel, absurdo, insensível. Enfim, vai se apropriar de todas as palavras que boiarem das canções que nos chegam lá do pequeno palco.

Duas doses antes da decisão de nos separarmos, ela se cala. Esfrega as mãos pelas faces, rítmica e repetidamente. Então ela vai ao sanitário, trôpega como um bloco de carnaval no final da noite. Os pensamentos e as pernas embaraçando-se pelo corredor.

Peço para limpar a mesa, já que a vida continuará envolta nessa bruma de vapores de um litro esverdeado e de um líquido dourado. Pago a conta e espero em pé junto à saída do sanitário.

Segurando firme no cós das calças, vou conduzindo pro estacionamento aquele corpo amaciado pelas doses a flutuar numa nuvem de álcool.

Amanhã ela vai perguntar porque brigamos, enquanto procura a memória pelos cantos do quarto.

Saberá que nos desentendemos, mas não irá lembrar o porquê. Eu utilizarei as minhas mesmas falas da noite anterior, ou seja, uma sequencia de silêncios a navegar rumo ao horizonte, embalado pelo meu olhar vazio.

Antes de engolir o comprimido que lhe ofereço ela jura que me ama e que nunca mais irá beber.

Eu acredito piamente nas suas juras . . . de novo.


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