A cada dia vou vendendo um pouco de mim, esfarelando pela estrada, na passagem de instantes que não me pertencem.
A CADA DIA A SUA COTA DE VENDAS!
Este é o mandamento que me é imposto. Daqui a uma hora e quase duas vou estacionar no primeiro cliente.
Tira a pasta do porta malas, senta e espera, espera, espera. Mais um cafezinho, vai me dizer aquela recepcionista que insiste em fazer os seus pés aparecerem por debaixo da mesa. Casquentos, as unhas sem fazer, a cutícula horrível, naquele calçado de mau gosto que sou obrigado a ficar sabe-se lá quanto tempo encarando para não ver a cara dela enfiada no celular dando risinhos das coisas tontas que ela está curtindo.
Já não aguento olhar esses pés, saber que vou perder um dos clientes do dia porque, nessa chuva, todo mundo vai demorar para me atender.
Depois, o cliente que nem ia comprar nada, vai reclamar que não passei lá essa semana, vai dizer que precisou comprar da concorrência, que estou enricando e esqueço os pobres. O converseiro fiado de sempre.
A cada dia a sua cota de vendas!
O celular, toca o celular. Ela quer saber se está tudo bem. Quer nada, isso é só para introduzir o blá blá blá. Quer mesmo é arrancar o meu aceite para reformar a cozinha.
Vontade de dizer para ela ligar para o cliente e explicar a situação financeira lá de casa. Nem vai querer. São essas unhas me espiando por debaixo da mesa e ela me alugando o escutador.
Asco, vontade de vomitar o cafezinho bem no meio da espera. Saio com um já vou entrar na sala do cliente, para concluir a ligação sem autorizar nada. Outro cafezinho? Pro inferno!
A cada dia a sua cota de vendas!
Final do dia, três horas e quase quatro de estrada, dez horas de esquenta cadeira, um cliente sem atender, outros cinco que compraram por um e chego na rua de casa. A rua mortinha. Só mais 400 metros, o abençoado lar.
Alivio o pé do acelerador, deixo o carro descer manso pela rua. Até a esquina, o que eu mais queria era chegar, agora quero não chegar, mas chego. Atiro o cadáver na rede, a pasta sobre o peito, o celular caído na rede, fecho os olhos, só ouço: o papai chegou!
São dez segundos até eles se atirarem por cima da pasta. Os amores da minha vida, a razão desse corre todo.
A cada dia a sua cota de vendas!
Hoje tive um sexto de minuto, de meus, nestas 14 horas. Eu preciso de uns instantes para tirar da cabeça os clientes, a estrada, os pés mal feitos da recepcionista, a meta do dia, o diabo.
A cada dia a sua cota de vendas!
Dez segundos, só tive dez segundos. Agora vou ter outros dez entre fechar a porta do banheiro, tirar a roupa, encarar o espelho, ligar o chuveiro e ela chegar, abrir o box perguntando se está tudo bem. Tudo bem amor, maravilha.
É a minha autorização, a senha para ela começar o palavrório do dia. Quando ela chega na reforma da cozinha, já não ouço mais nada, fiquei lá, embaixo da pia com a história da barata. Só consigo pensar no “amor, pega o revólver no armário”.
A cada dia a sua cota de vendas!
Vou vendendo um pouco de mim a cada dia, vou me esfarelando pela estrada, a cada cliente, na passagem dos instantes que não me pertencem.
A cada dia a sua cota de vendas!
Ah vai, alegria, amanhã tudo será diferente, de novo.
Áudio: Trabalhos técnicos de Elias Vergennes – UEL FM.