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A fome da caçamba

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Casa rural de madeira ao redor do lago.

Nas caçambas de demolição cabe quase tudo, só não cabe mesmo saudades. Pois as caçambas não têm essa sensibilidade.


A CAÇAMBA DE ENTULHO.

O Luís está entusiasmado para mostrar a reforma da antiga casa no centro da cidade, pois ali vai nascer a clínica do Dr. Luís.

Acompanho ele feliz, pois acho uma maravilha estas antigas casas em estilo modernista, que lembram a construção de Brasília. Mas tenho dó de que estejam dando lugar para prédios, farmácias e estacionamentos.

Os operários estão com as marretas fervendo. Um quebra-quebra, um põe abaixo sem misericórdia.

Por fim, pergunto pelos lustres antigos que iluminavam a casa. Estão embalados numa caixa. Combinamos que vou resgatá-los e instalar ainda não sei onde, a fim de garantir uma sobrevida àquelas belezuras.

Mas o que ocupa mesmo a minha atenção são as caçambas dos entulhos da demolição. Elas estão atropelando uma miríade de roseiras. As flores estão ali, quietas e conformadas, aguardando o dia da execução da pena: terão os pescoços cortados. Afinal, paisagista algum manteria rosas, perigosas roseiras com espinhos, na entrada de uma clínica.

Mas as caçambas estão lá a devorar os hercúleos tijolos de argila batida. Já mastigam o barro das telhas francesas com todas as chuvas, os orvalhos, os sóis que elas suportaram nessas décadas.

Então surge o esqueleto colorido, um profundo azul, da enorme pia do lavabo. Espio de esguelha, pois não tenho coragem de encarar os seus despojos.

Mas nem só os azulejos vão parar nas caçambas. Os restos de paredes levam junto as manchas dos retratos dos antepassados, pessoas que viveram ou frequentaram os jantares da casa. Vejo entre os restos de demolição, uma caderneta com os números de telefones dos amigos, dos parentes. Também um resto de álbum de fotos: garantia de que a família viveu bons momentos. Estão lá aqueles instantes que decidimos imortalizar, até que uma caçamba de entulhos se transforme no rabecão da última viagem dessas memórias.

Então, aos poucos, fui sentindo uma família soterrada nas caçambas. Corpos, vidas, experiências, sonhos e alegrias. Tudo socado naquele trapézio de metal.

Nas caçambas de demolição cabe quase tudo, só não cabe mesmo saudades. Pois as caçambas não têm essa sensibilidade.

Nem o Luís está preocupado com isso. Só está bem feliz com a sua clínica, estruturada sobre a memória dos que viveram ali.


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Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – Rádio UEL.

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