A margem do meio do rio.

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Sempre buscamos uma fuga para a rotina do dia a dia. Talvez isso seja possível, quiçá só uma fantasia.


A MARGEM DO MEIO DO RIO.

Hoje eu vi um fantasma. Não. Não foi um lençol branco andando na madrugada. Foi mais. Uma cena toda, todinha, na minha frente. Uma coisa fantasiosa demais.

Acordei cedo. Mas o corpo estava doído. Resolvi ficar no rola-rola do colchão até as sete.

Olhos estalados, bem-te-vi assobiando forte lá fora, na sua algazarra de café da manhã.  Fiquei olhando um quadro que está na parede do quarto. Minha filha o pintou quando adolescente. Uma praia com uma colina à direita. Um céu matutino cinzento, pesado. A areia úmida da noite, da maré que se foi. No primeiro plano um barco vermelho com a borda superior branca, contrastando com tanto cinza carrancudo e melancólico azul.

Lembrei de um conto do Rosa, A Terceira Margem do Rio.
Foto de paisagem com jangada na praia adentrando as ondas sob o céu matutino.

Um pai que, calado, constrói um barco. Calado, sobe no barco. Calado, vai ao meio do rio e não sai de lá nunca mais. Desespero e incompreensão de todos.

Eu olho a colina do quadro. Todos os dias, enquanto o bem-te-vi recolhe os seus mosquitos de merenda, eu preciso subir uma colina dessas. Vai dar em outra praia com outro barquinho. Um novo dia.

Depois de décadas de sobe colina, parece que ela está maior, mais íngreme. A areia mais fofa. Estou menos disposto. Não tem mais qualquer encanto a paisagem que, ao final do dia, é possível se ver lá de cima. O horizonte achatou-se, ficou chato! Dia a dia, suando, ofegante, chego ao topo. Sobra só isso, o mecânico ato. Suor, dor muscular, falta de ar. Nas primeiras praias também tinha falta de ar. Mas era de tão boquiaberto, de excitação, de contentamento. Outro ar.

Foto de rio cristalino com peixes sob a incidência de raio de sol.

Fico pensando que aquele barquinho, de um despudorado vermelho, seja a salvação, seja a terceira via, a terceira margem. É pular nele e ir até outra praia, navegando, sem subir colina alguma.

Não será isso que as pessoas fazem quando, chegado o final do dia, mergulham na cachaça, hipnotizam na novela? Buscam algo que signifique um, por pequeno que seja, prazerzinho para contabilizar naquele dia. Ou os que não cuidam da sua saúde. Trabalham, trabalham, se aborrecem. Sobem a colina correndo, na esperança de que o coração ou a cabeça não aguente e, afinal, entrem no barquinho e possam ir para o meio do rio. Longe de tudo, de todos. Não existe um lugar mais distante do que o meio do rio. Será que seria essa a ideia do Rosa, de uma terceira margem do rio? O meio, bem o meiozinho.

Ah! Ah! Acho que eu quero esta terceira margem. Onde não há ninguém.

Nem a solidão chega ali, porque na terceira margem, no meio do rio, conseguimos ficar acompanhados, conosco mesmo. É, eu sinto muita saudade. Muita saudade de mim. Acho que só poderia me encontrar lá, no meio do rio. Na praia, é muito bem-te-vi. Muita colina. Só montinhos de areia fofa. Mas precisa ter muita coragem para entrar no barco. Muita determinação para jogar os remos fora.

É um fantasma. Eu não disse que vi um fantasma? Assombroso. Sorte que além do quadro, no canto do quarto, todo protetor, tem um anjo da guarda de madeira, de uns 80 centímetros de altura e poder.

É levantar e espantar o bem-te-vi. A culpa é dele.

O bem-te-vi é que está fazendo cantoria de sereia na minha orelha.

Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – RÁDIO UEL.

Acesse AQUI outro post da Coluna O COTIDIANO.

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