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A recadeira dos falecidos

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O céu finalmente parou a eterna cantoria por umas horas. Pra lá só vai pecado, boas ações e o que o finado puder lembrar.


A RECADEIRA DOS FALECIDOS.

O nome de batismo não haveria uma alma que soubesse indicar a quem pertencia. Mas a alcunha Maria Paraíba, era conhecida, odiada, temida, amada por todo o bairro.

Junto ao crucifixo a eterna garrucha enfiada entre os peitos. Pois a arma garante imunidade frente aos mortais e a cruz assegura ordem aos vizinhos invisíveis.

Já então A Paraíba vivia de uma economia mista. Sendo assim a renda de umas rezas ou de uns benzimentos; a usura de dinheiros miúdos. E também um estabelecimento registrado no ramo de alimentos e bebidas, mas que mais satisfazia os apetites da luxúria que os do estômago.

Assim surgia a justificativa de acolher aquelas meninas, expulsas por pais quando as camisetas rotas ficam muito curtas na barriga avantajada. O resultado são as nove pessoinhas que foram crescendo e chamando A Paraíba de mãe, enquanto bebiam o leite da cabra que circulava pelo quintal, pela casa e pelo comércio, com mamas expostas e pingantes.

Foto de estátua em metal de Iansã.
Estátua de Yansã, em metal.

Então os anos escorreram. Filhos, netos e até um bisneto, todos foram se estabelecendo numa vida calçada nos ditames, mais ou menos questionáveis ou louváveis, da Velha Senhora.

Mas aconteceu que após o Natal, neste interstício ao último de ano, A Mulher resolveu conclamar o povo a preparar os recados para os entes falecidos. Ninguém estranhou! Afinal, a fama de benzedeira, macumbeira e outros atributos da ordem dos espíritos, lhe conferia crédito. Pois então, receberia os recados até a tarde da sexta-feira.

Enfim, mais não disse e nem perguntaram.

Começou o enxame de gentes com cartas, bilhetes, rabiscos. Mas aí Ela deu um paratequieto: “Não domino as letras minhas gentes. Vão me dizendo que vou empacotando aqui na cachola. É nome do finado, nome do recadante e o recado. Adespois, nunca ouvi fala que se vá ao lado de lá com uma caixa de bilhetes. Pra lá só vai pecado, boas ações e o que o finado puder alembrar”.

Foi então que uma das filhas esticou o braço e em nome da ordem, organizou a fila.

O sol da quinta a encontrou entoando um arremedo de canção, à moda dos trovadores. Todos os nomes e recados enfiados na melodia, como se fossem as contas num barbante de rosário.

Na sexta pela tarde embaralhavam-se saudações para pais; garantias de saudades eternas para filhos que partiram precoces; comunicados de nascimentos e por aí foi. Pois até o noivo assassinado a caminho do altar, receberia a notícia da preservação da virgindade da sua devotada e eterna noiva.

Do mesmo modo, é bem verdade que também seguiam xingamentos de mulheres traídas, que só tarde descobriram as peripécias do marido. Ou mesmo o comerciante que enviou o fiado com valores devidamente atualizados.

Coisas corriqueiras para Esta Maria.

No vinte e nove de dezembro partiu com um dos filhos e com Deus, rumo ao litoral. A missão sendo a de chegar antes do surgir da última lua cheia do ano.

O caminho se fez num repetir da ladainha já cantada tantas vezes, naqueles dias.

Instalada na cadeira de lona na areia, fez questão da baeta colorida: “Morto já passa frio o resto da vida. Não vou padece frio agora”. Rosnou curto e despachou o ouvinte, com ordens de retorno só depois de duas horas, tempo de recitar a canção dos recados.

Então a lua cheia começava a piscar no horizonte, embalada pelo marulhar das ondas.

Ao vir recolhê-la, o filho sentiu falta de parte dos cinquenta quilos da Mãe. Pois com a morte, muito peso dos outros se foi. Assim também a densidade do seu espírito abandonou a cadeira de lona.

Sobrou só o sobrável mesmo: pele, ossos e umas nojeiras.

Então o rapaz entendeu tudo. Depositou o sono eterno no carro e retornou. Só não soube o que fazer com aquela lágrima no canto do olho da Velha. Parecia que estava ali todo o pecado do mundo. Achou melhor deixar estar.

Naquele Ano Novo formou-se uma fila nos céus e infernos para ouvir algumas centenas de recados vindos lá da Bairro Campinho.

Do inferno, não sei, mas o céu, este finalmente parou a eterna cantoria por umas horas.

logo rádio UEL

Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – Rádio UEL.

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