Balcão de bar.

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As dores do cotidiano nos levam a rotinas que nos escravizam. E a vida segue.


BALCÃO DE BAR.

Em Brasília, 19 horas. Ao ouvir isso um troço erupciona no meu peito. Um nó, uma sensação de derrota. Outra vez estou neste banquinho bambo, o umbigo escorado no balcão nojento do bar da esquina suspeita.

Abaixo a cabeça e miro a lata atrás do balcão, cheia de tampinhas de garrafa. Tantas, muitas. Penso que só não tem mais tampinhas do que o número de vezes que eu prometi nem passar nessa rua emporcalhada.

Caixa de Texto: A fim de enfrentar as dores do cotidiano, inventamos práticas que se tornam rotinas que nos escravizam. E a vida segue.

Somos sempre os mesmos frequentadores. A mesma fauna, noite após noite. Mas temos nossos códigos; assim, uma ética desenhada ao longo das noites, nossas manias. O ritual é que, mais ou menos, cada qual fala de uma vez. Já sabe que a história não pode ser muito longa nem causar polêmica e discussões.

O término da história já ouvida em dezenas de versões, é acenado com uma golada firme no copo de bebida, que pacientemente acompanha a conversa à frente do bêbado da vez. Os demais ficam obrigados a um ou outro comentário de aprovação, de espanto, ou um som gutural qualquer. E segue a roda.

Afinal, estamos aqui para sermos ouvidos, para cobrir de conversa o piso empesteado de migalhas de todos os pasteis do dia.

Alguma noite é diferente:

Então estaciona um carro melhor que os nossos, bem na esquina, fora da vaga, sinal de poder ou indiferença. Em seguida desce uma figura aprumada, terno alinhado, relógio brilhando no pulso. Entra cerimonioso. Cumprimenta, pede licença, pois sabe que as portas abertas para a rua não significam que o bar seja público, que ali tem uma matilha de donos do balcão. Conhece as regras de boteco.

Nesse momento ele toma um dos banquinhos, com delicadeza, pedindo permissão. Aí senta-se como fosse um trabalhador braçal extenuado, que veio libertar-se do fardo do dia. Voz rouca pelo cigarro, mas firme: Dr. Siqueira, às ordens dos amigos. Claro, o filho da santa é um rábula, advogado. Fala manso, afaga o ego deste ou daquele, elogia forte a solução do outro na história. A matilha toma animo.

Hoje tem plateia nova, não conhece as histórias de sempre, embora sejam sempre as mesmas histórias em todos os botecos da cidade. Mas esse engomadinho não me engana, não. Vejo que bebe acelerado. Goladas quase de copo todo. Logo vai estar inconveniente com o álcool encharcando os seus miolos. Então vai discordar de um, desmentir o outro, encontrar uma contradição na conversa. Por fim vai querer chamar a atenção de todos para si. Logo depois vai achar um desavisado para ir às vias de fato. Por isso esse ser não tem um bar sujo para chamar de seu. Fica rodando por aí, importunando hora uns, hora outros, mas nunca será um de nós, os que temos um balcão sebento para chamar de seu.

Fico olhando ao redor, admirando as teias de aranha refletindo a luz pouca da lâmpada empoeirada.

O pior é que venho sempre nesta mesma espelunca, encontrar os mesmos insuportáveis amigos de bebedeira. O balcão nos une, é verdade. Mas também a segurança de antever quem vamos encontrar, o que vai rolar na noite. Aí me aparece um incomodo desses para quebrar nossa rotina.

Sabemos até como as noites acabam. Acabam sempre igual, não muito depois do sarna contar novamente sobre o apartamento que ele tinha em Miami. Terminada a novela na televisão, a esposa do Vagner desce a rua, toda nervosinha, chutando os gatos. Entra, chama todo mundo de vagabundo e vai falando.

Cada qual abaixa as ventas, começa a contar as migalhas de pastel no chão emporcalhado, enquanto a linguaruda rememora os tempos de namoro, as promessas que ouviu ou inventou, e vai seguindo na linha do tempo. A biografia do casamento com o Vagner, ali exposta à pouca luz do bar e emoldurada pelas teias de aranha.

Às vezes esquece um episódio ou outro, não tem importância. Nós vamos visualizando de memória, como se tivesse sido dito. Já é uma de nós, a coitada. Também quer ser ouvida um cadinho depois que desliga a televisão. Ninguém se atreve a um gole de bebida sequer. Olhos fixos no chão, nas migalhas de pastéis, migalhas da vida de cada um. A vida em migalhas.

Então ela ensaia um choro, só umas lágrimas. Pega no braço do Vagner e ele segue como um autômato subindo a rua com o amor da sua vida. Esvaziamos os copos e seguimos a procissão, cada um carregando o andor com a sua santa esposa na consciência, já antecipando o ar de pouco caso que ela vai fazer quando fecharmos a porta de casa às nossas costas.

Cara, deu para sacar que este puto boteco nosso de cada dia é quase o pior lugar do mundo?

Quase, pois só pode mesmo existir um lugar pior. O nosso abençoado lar, onde reina absoluta a indiferença de cada dia, que nos espanca até atirar não às cordas, mas para os braços fétidos do balcão do bar, que nos acolhe, afaga o fígado, nos cura e nos manda de volta pra luta.


Áudio: trabalhos técnicos de Elias Vergennes – Rádio UEL.

Acesse outro post da coluna O COTIDIANO.

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