Vivi calado e … fui!
Epitáfio de um calado.
O Aluísio é muito previsível. Quando ele fala em sair na noite de sábado e faz, ou tenta fazer, suspense com o destino da noite, é só perguntar no outro grupo, do qual ele não participa, qual é o local hot. É lá que iremos.
Ele não precisa de uma noite agradável, de um local gostoso. Precisa de um lugar de onde possa apregoar, durante a semana toda, que ele foi lá.
Pior que é sempre a mesma coisa esses lugarzinhos fashion. Muito barulho, comida besta, besta e ruim, muita gente fake, cada um tentando parecer o que não é, atendimento lixo e preço de Tókio.
Mas vamos lá, né. Alegria, alegria, que é sábado. Vamos pegar embalo para ajudar na subida de noite dominical deprê.
No retorno, venho dirigindo, quase lendo uma poesia nos respingos de chuva, coloridos no para-brisa do carro.
Aí ela me acusa, muito suavemente, com cuidado, de ser muito calado.
Putz, já fui de tudo, mas agora sou calado! Estou até vendo o epitáfio na minha lápide: aqui jaz o calado. Todos vão saber de quem se trata: Euzinho, mesmo!
Eu nem respondi nada, que não condiz com um calado responder algo, né?
Pior, ainda faltam uns 20 quilômetros para chegarmos em casa, ao meu chuveiro que tudo apaga, até as poeiras da alma.
Meus miolos foram fazendo redemoinho com essa novidade, quilometro a quilometro. Primeiro preciso definir se sou calado mesmo. Logo de cara estabeleci que quieto não sou. Mas só para mim mesmo, que eu nem abri a boca.
Quieto é diferente de calado. Parece-me que quieto tem mais a ver com o interior, mas também com os movimentos do corpo. Ela estava se referindo à fala.
Mas isso de calado também me traz duas outras conotações. O sentido bélico, da primeira guerra mundial, quando os soldados calavam a baioneta na espingarda. E o calado do navio, que é a parte que fica dentro da água. Nem é a isso que ela está se referindo. É ao meu silencio verbal mesmo.
É, porque meus olhos seguem falando sempre. O maior barulho que eu provoco, com o olhar. Verdade. O rádio do carro está desligado. Se é o meu carro, sempre está desligado. Em casa, não ligo a televisão, não ouço som, não arrasto a cadeira, não bato a porta.
Não produzo som nenhum. Tipo gato circulando, silencioso.
Falas, só uns grunhidos, poucos, raros. Cantarolar no chuveiro? Endoidou! Cara, vou dar razão a ela. Passamos dois pares de hora no badalado local e eu quase nem falei nada. Só umas coisinhas para disfarçar, de caso pensado mesmo.
Aí veio uma vontade atávica de colocar a culpa nela. Sempre a culpa é dela, rsss. É ela que me deixa calado, sem palavras, sem motivação para as palavras.
Ela fala de mais, é verdade. Começa uma história e … sem fim. Detalhes, detalhes e mais detalhes. Eu não tenho detalhes, não tenho nem a história. Só conto histórias para mim mesmo, numa fração de momento já mentalizei todos os pormenores, a história toda. Já era.
Acho que só me resta deixar um epitáfio pronto. Ah, é isso. Não vou deixar que, depois de morto, falem por mim. Muito menos ela, senão é capaz de escrever o primeiro livro-epitáfio da história. Não vai pegar bem para minha reputação. Afinal, sabe como vai ser?
Vivi calado e … fui!
Áudio: Trabalhos técnicos de Elias Vergennes – RÁDIO UEL.