Um indigente só passou a fazer parte das preocupações da vizinhança depois que morreu. Morto passou a merecer um cadinho de dignidade.
MORTE DIGNA.
Na praça perto de casa, estava o maior agito. Curiosos para todo lado, uma viatura, uma ambulância indo embora. Resolvi xeretar também. Perguntei o que era, a senhora respondeu: “nada não, é um mendigo morto na madrugada fria”. A ambulância não quis levar. Defunto não anda de ambulância. Ainda mais naquele fedor.
O policial, também não quis levar. Viatura é para bandido, não para finado. Tem que esperar o rabecão.
Nesta altura, um senhor indignou-se. Como é que se pode tratar alguém assim. Vai conversa e a coisa começou a esquentar. Alguém disse que a Ação Social da prefeitura dá o caixão. Aí a funerária recolhe e providencia o enterro como indigente.
Isto me tocou. O sol já alto e só então alguém se lembrou de que era uma pessoa aquele amontoado de feridas e sujeira que jazia na grama. Mas acho que esta observação da morena chegou atrasada. Agora já não é mais uma pessoa. É o cadáver de uma pessoa.
Lembrei-me que passávamos por ali todos os dias, alucinados com nossos muito e importantes afazeres. Cheios de preocupações com nossas vidinhas. O moço esteve sempre ali. Ele, um saco cheio de porcarias, o estômago vazio e a alma muito mais vazia ainda. Ninguém nunca pôs reparo nele? Nenhum cidadão viu que ali, embaixo da sujeira, em cima do saco de estopa, tinha uma pessoa?
Agora estamos todos revoltados. O cara merece um “enterro de cristão”, até com flores. Vamos dizer assim: um enterro digno. É, merece alguma dignidade na sua morte.
Mas durante sua vida, não teve dignidade não. Era uma coisa emporcalhando o jardim bonito da praça. Um quase-bicho. Talvez um bicho mesmo. Por que não? Papagaio é bicho e fala. Ele, nunca ouvimos falando. Cachorro é bicho e toma banho, passa colônia, apara as unhas. A coisa que agora jazia ali, estava que era uma carniça.
Eu ia sair dali convencido de que atribuímos mais dignidade a uma pessoa morta que a uma pessoa necessitada. Só a morte lhe atribui algum valor, resgata o “status” de gente, de pessoa. Até não morrer fica ali, apodrecendo e ninguém liga. Bom, mas isto é justo. Aquela coisa nem tem título de eleitor. Que coçe suas pulgas e não incomode.
Já estou saindo, decepcionado por pertencer a esta espécie que chamamos Homo sapiens quando uma senhora rosna alto: “não sei o que é que vocês estão tão preocupados. Este cara vivia bêbado. Um pinguço”.
Lembrei do marido dela. A classificação que ela deu do finado, serve muito bem para aquele que reparte a cama com ela.
E, além do mais, o que ela queria. Que o cara passasse seus dias sem anestesiar-se um pouco. Está cheio de doutor e tal que precisa de álcool, cafeína ou cocaína mesmo, pra aguentar o seu dia-a-dia. E este indigente não pode passar o dia bêbado?
Bateu um remorso. Fiquei arrependido de não ter, todos os dias, passado por aquela praça e dado uma garrafa de aguardente para aquele moço. Agora, com certeza estaria no céu defendendo um cantinho para mim.
Descanse em paz companheiro!
Áudio: Trabalhos técnicos de Élson Ferreira de Lima, Rádio UEL.
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