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O espelho obtuso

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É o medo de olhar no espelho e ver toda a culpa que sentimos por ter negligenciado a pessoa que amamos, mas que já não está conosco.


O ESPELHO OBTUSO.

Os dilúvios do final de tarde, no período de verão do norte do Brasil, são coisa de assustar. O seu Totô já havia avisado que nuvem escura naquele pedaço de céu que chamam de buraco da velha, é garantia de água à vontade.

A avó veio ligeira, com um pano nas mãos, afim de cobrir o espelho grande. A explicação dela é que esses pedaços de vidro atraem os raios.

Com o barulho da chuva, todos se calam, só os olhos conversam com a paisagem lá de fora. Cada qual vai cozinhando dentro de si as lembranças que esse toró traz das suas vidas.

De minha parte, posso contar pra você que fiquei pensando nos espelhos que na minha infância as tias cobriam quando morria alguém na família.

O tecido preto recusando-se a refletir belezas e tristezas.

Até onde sei é um antigo costume judaico. Mas no passado também havia a crença de que a alma do finado poderia ficar presa no vidro se ele visse o reflexo de coisas de que gostava. A opacidade seria uma forma de garantir que o morto seguisse o caminho para o além.

Ainda hoje há quem acredite que os espelhos são portais para outros mundos e podem atrair espíritos problemáticos. Assim, havendo morte na casa, melhor fechar essa porta e deixar os espíritos do lado de lá.

Quando garoto, eu pensava que esse fosse um costume bonito. Um sinal externo da tristeza que envolvia a família, um gesto simbólico. Além de que, dessa forma, não seria possível que alguém ainda vivo, fosse lá enfatizar a sua beleza, num momento de tristeza. De fato, não há porque fazer a barba ou pentear os cabelos, quando o que temos no peito é só o desespero da perda.

É verdade que nos dias atuais isso tudo não faz muito sentido, pois os velórios não são em casa, as pessoas não virão nos visitar nesses momentos. No máximo uma mensagem no nosso perfil. Talvez faça mesmo mais sentido cobrir o espelho durante o temporal afim de evitar raios.

Porém, naquela tarde chuvosa do Norte eu pensei que os espelhos da minha infância não fossem cobertos por luto. Talvez tenham sido cobertos por medo mesmo.

Medo de olhar no espelho e ver toda a culpa que sentíamos por ter negligenciado a pessoa que amamos e que, até ontem, convivia conosco sob o mesmo teto.

Afinal, é mais fácil amar os que se foram do que aqueles que estão conosco no dia-a-dia.


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