Procura-se 18.262 dias

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Samba de Roda de Delson Uchôa. Acrilica e resina sobre lona.

São dezoito mil e tantos dias que o ralo da vida teve a satisfação de engolir.


PROCURA-SE 18.262 DIAS.

O José descortina os olhos e um céu azulíssimo já ilumina sua manhã. Ele não precisa descer da cama às seis horas de um domingo de verão. Mas talvez seja a expectativa dos poucos convidados que virão comemorar o seu aniversário, talvez seja o calor, quiçá a bexiga a reclamar conteúdos; sente que precisa levantar-se.

Pois logo mais a casa terá o ruído de dois ou três casais de amigos misturados aos poucos familiares. Agora, com um fio de memória o José vai costurando essa pequena aldeia de pessoas que deu conta de amealhar nesses 50 anos.

É isso que vai dizendo ao espelho enquanto seca o rosto na carícia da toalha de fio egípcio. Seja lá aonde for esse Egito.

Afinal, nunca se encara ao espelho. Pois é só um bate olhos junto ao pente nos minguados fios da cabeça. Mas hoje cabe avaliar com mais vagar estes dois sulcos nos cantos da boca que serve para alimentar o corpo e também as relações com as pessoas próximas; esses convidados que virão logo, logo. Poucos, é verdade, mas igualmente verdadeiros, da vida toda.

Samba de Roda de Delson Uchôa. Acrilica e resina sobre lona.
Samba de Roda de Delson Uchôa. Acrilica e resina sobre lona.

Mas o José sabe que essas erosões que o espelho denuncia nos cantos da boca foram sendo forjadas pelas pequenas decepções, pelas não tão minúsculas frustrações, por uma enormidade de incômodos acumulados nos dias. Estão ali, como uma coleção estampada onde todos poderiam ler, tivessem um rastro de sensibilidade para enxergar o que está escancarado. No entanto o José gostaria de ter um leve sorriso incrustado na alma. Isso resolveria as deformações, subiria os lábios e passaria outra imagem do seu interior. Pois seria bom expressar alguma alegria de viver, um acolhimento qualquer.

Melhor que o José suba sua atenção para os pés de galinha que se desenham próximo aos olhos. Esse discreto caderno de poucas linhas que leva escritos seus acumulados pecados. Uns até perdoáveis, outros quase. Nada para condenações eternas. Só faltas pequenas, coisa de menos.

Agora sim o aniversariante ensaia uma mascara de luz, ao pensar que afinal é só vestir o personagem e, pelo menos hoje, representar o papel de felicidade nesse teatrinho de comédia que vai ser encenado durante parte do domingo. Depois será só soprar a chama do cinco e do zero e apagar esses cinquenta anos que já desperdiçou.

São dezoito mil e tantos dias que o ralo da vida teve a satisfação de engolir.


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Áudio: Trabalhos técnicos e paisagem sonora de Ricardo Lima – Rádio UEL.

Acesse AQUI outro post da Coluna O COTIDIANO.

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