Uma quase ausência

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foto de flor de quiabo de metro

O desespero tomando as rédeas, fazendo vezes de razão e de bom senso.


UMA QUASE AUSÊNCIA.
A DESGRAÇA:

Uma família amiga está com a filha doente. Como o pai é um profissional da saúde, sabe que não há modo de salvá-la. O mal é incurável e progressivo.

Aquele sorriso estonteante terá um ano, dezoito meses e se apagará.

A efêmera e estonteante flor do quiabo de metro.
A MAGIA:

Já aconteceu de tudo na família. Mas agora estão numa fase de magia.

“Afinal, as doenças incuráveis devolvem nossa mente a um estado primitivo. Ressuscitam nosso pensamento mágico. Como não compreendemos bem o câncer, nem podemos tratá-lo, atribuímos sua súbita e incompreensível aparição a potências sobrenaturais, voltamos a ter ideias supersticiosas, religiosas: existe um Deus do mal, ou um demônio, que nos manda um castigo sob a forma de um corpo estranho: uma coisa que invade o corpo e o destrói. Então oferecemos sacrifícios a essa deidade, fazemos promessas, ou recitamos ensalmos e exibimos mostras de humilhação em meio às súplicas. Como a doença é obscura, acreditamos que só uma entidade ainda mais obscura pode ser capaz de curá-la.” *

Então aceitamos qualquer alternativa: um passe, uma benção, uma garrafada, um medicamento experimental, uma raizada.

Contudo, o que está ocorrendo com meu amigo é que estão agarrando opções que claramente são enganação e comércio da desgraça. E não é isso muito comum?

É aquele caso de uma médica na capital que inventou um tratamento que só ela sabe. Ou a brasileira que mora nos Estados Unidos e tem uma terapia baseada na alimentação. Pois segundo ela é só tirar o açúcar, que é do que o câncer vive, que você elimina o mal, de fome.

Tem também uma aparente terapia gênica, que no fim das contas é só um trabalho acadêmico onde precisavam de pacientes que pudessem financiar exames que, por serem exames, não têm poder de cura.

Não estou inventando nada disso, pois são coisas que estão aí a todo o momento. Afinal, é o desespero tomando as rédeas, fazendo as vezes da razão e do bom senso.

A CONFIDÊNCIA:

Mas consegui sentar-me um momento com a garota doente, a sós. Então ela disse que adora quando a tia fica com ela. Pois torna suas horas melhores. Por quê? Explico: a tia não fala muito, nem está a cada minuto mexendo o travesseiro ou aferindo a temperatura da menina.

Senta-se e conversa. Conta coisas, floreia histórias.

Portanto, o que a menina pediu, em tom confidencial, é que eu convença os pais a deixar a tia mais tempo a sós com ela. Igualmente, que os pais parem de levá-la para cá e para lá à caça de milagres. Emoldurou um sorriso que não consigo descrever e disse já ter aceitado que logo não estará conosco. Mas que enquanto está, quer ficar em Paz.

Agora é falar com os seus pais. Já passei duas noites sem dormir, mas acho que vou dar conta da tarefa. Amém.  


*In: Héctor Abad. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – RÁDIO UEL.

Acesse AQUI outro post da Coluna O COTIDIANO.

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