Vai o finado, descendo a rua.

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Foto da obra Palabra Salobra do artista plástico Nuno Ramos.
radio antigo azul

Um anúncio fúnebre, nos leva a refletir sobre a vida. Sobre a importância daquele finado que vai descendo a rua.


VAI O FINADO, DESCENDO A RUA.

O sol a pino queimando o couro, brilhando no límpido céu do planalto central, em Pirenópolis.

Acabo de sair do rio das Almas, o corpo lavado e o espírito quarado nas pedras.

Então vou descendo a rua do Lazer, atrás de uma carne goiana para acalmar os interiores.

Eis que passa o carro de som. A família convida para o velório de Dona Dica, viúva do seu fulano, falecida na data de hoje. Apesar da fome, esse anúncio fúnebre me traz à boca do estômago uma lembrança da infância.

Nuno Ramos, Obra Palabra Salobra, s.d. Fotografada no FAMA em Itu, SP, jun19.

Naquele então, de calças curtas, enfiado no kichute do natal anterior, eu ficava estátua na calçada observando os comerciantes da cidadezinha baixarem as portas para a passagem da procissão rumando o cemitério.

Todos caminham lento. À exceção do finado que vai deitado. Além disso, vai nos confortos do cetim.

Os bêbados do bar em frente ao cinema, antes de baixar a porta, saíram para o passeio, copo na mão, cigarro às costas, olhar meio no chão, um tanto na viúva. Passado o féretro, retornam ao bar, com o fim de continuar bebendo a tarde e já xingando o que ia deitado.

Avarento, agora de que adianta o dinheiro todo que o desgraçado não gastou? Pois deixou para a viúva se enfeitar, que ela ainda vale uns beliscões.

Então arrotam gargalhadas, já sinalizando mais uma para o butequeiro.

Mas isso de avisar do passamento pelo carro de som é uma estratégia das inteligentes. Cria o problema de depois, ao encontrar um parente próximo do morto, ser impossível dizer que não compareceu no velório por não saber do acontecido. O tal do: só fiquei sabendo no dia seguinte.

E o carro de som?

Dessa forma, a solução é lotar a cerimônia e fazer cara de compadecido.

É motivo particular de alegria ver essas práticas sobrevivendo nos interiores do Brasil. Pois confere mais proximidade às pessoas, um senso comunitário menos frouxo.

Lá a morte ainda é um acontecido da sociedade e não só da família e de amigos mais próximos. Dessa maneira alimenta a conversa nas ruas, nas portas, nas cadeiras que ainda se estendem nas calçadas desse Goiás.

Afinal, hoje nem mesmo se comunicam os falecimentos. Como se fosse vergonhoso alguém morrer na família. Algo como um fracasso.

Logo após o enterro os mais próximos fecham-se. A morte é uma anulação do corpo, mas também é uma derrota da família. Como se não tivesse sido feito todo o possível. Um azar passou por ali, uma coruja que piou na cumeeira da casa. Algo para ser ocultado com o defunto, nos silêncios e escondidos.

As missas de sétimo dia, de mês, de ano ou não acontecem mais, ou a família não participa para os conhecidos. Ou ninguém vai mesmo.

Missa de corpo presente, então …

Isso tudo pode ser só saudosismo meu. Ou então pode ser um desejo oculto de rever aquele espírito de comunidade que tínhamos nas pequenas localidades, onde a vida de um, era a vida de todos.

Onde a vida de alguém tinha uma importância: uma ânsia de não sermos tão descartáveis.

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Áudio: Trabalhos técnicos e paisagem sonora de Elias Vergennes – Rádio UEL.

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